Como um romance salvou a Notre-Dame e mudou a percepção da arquitetura gótica

Este artigo foi originalmente publicado pela Common Edge como "It’s a Book. It’s a Building. It’s a Behavioral Intervention!"

Alguns anos atrás, ao visitar, ou melhor, explorar a Notre-Dame, o autor deste livro encontrou em um canto escuro de uma das torres, esta palavra esculpida na parede:

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Estes caracteres gregos, escurecidos pelo tempo, e esculpidos profundamente na pedra com as peculiaridades de forma e arranjo comuns à caligrafia gótica realizada manualmente durante a Idade Média, sobretudo, o triste significado desta palavra foi o que mais impressionou o autor.

A palavra esculpida na parede significa "destino". Assim começa o trágico romance de Victor Hugo, Notre-Dame de Paris, publicado em 1831. Muitos consideram a história como uma advertência contra o julgamento das pessoas por sua aparência ou status. O protagonista, Quasimodo, nascido monstruosamente deformado, foi rejeitado e entregue à igreja. O antagonista do romance, o arcebispo de Notre-Dame, Claude Frollo, atribui ao jovem menino a tarefa de sineiro. Mais tarde, o pai adotivo e também o filho se apaixonam pela mesma menina, uma fascinante dançarina de rua de dezesseis anos chamada Esmerelda. Frollo finalmente trai Esmerelda, enquanto Quasimodo tenta salvá-la. O monstro se revela um herói, mas ele chega tarde demais. Esmerelda é enforcada por um crime que não cometeu. Com raiva, Quasimodo empurra seu pai do telhado da catedral de Notre-Dame e passa o resto de seus dias escondido no cemitério onde Esmerelda está enterrada, de luto.

Renomeado como The Hunchback of Notre Dame (O Corcunda de Notre Dame), em sua publicação em inglês, o romance inverte o padrão atual da metáfora do monstro que se torna herói. Mas o livro não trata apenas sobre um menino deformado que tenta salvar a vida de uma linda garota. O Corcunda é um romance gótico sobre um edifício gótico. O foco moral da história é a catedral de Notre-Dame. A arquitetura prepara o cenário, constrói os principais personagens e une para sempre os seus destinos. O personagem central da história não é uma pessoa; É um edifício, o qual Hugo considerou sensível.

A luz inquieta das chamas parecem ter vida própria. Havia serpentes, as quais pareciam estar rindo, gárgulas gritando, salamandras cuspindo fogo, dragões soprando fumaça.

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A arquitetura gótica evoluiu do estilo românico por volta de 1100 d.C e atingiu seu auge em meados dos anos 1400. Nos anos 1800, quando Victor Hugo escreveu o livro, o gótico já havia dado lugar ao Renascimento. Até então, os parisienses consideravam os edifícios medievais vulgares, monstruosidades deformadas. Chamar um edifício de gótico era considerado um insulto, uma referência às tribos góticas e vândalos germânicos, considerados povos bárbaros. A história gótica de Paris estava em declínio em nome de projetos mais respeitáveis, ou pelo menos, mais lucrativos.

Victor Hugo estava aflito. Ele acreditava que a arquitetura atingira seu ápice durante a era gótica, escrevendo: "De fato, desde o início até o século XV da era cristã inclusive, a arquitetura era o grande livro da humanidade, a principal expressão do homem em seus vários estágios de desenvolvimento, seja como força ou como intelecto. "Ele amava a Paris gótica e queria que suas estruturas fossem preservadas. As torres de Notre-Dame, ele argumentou, eram símbolos de um passado glorioso. Para Hugo, arquitetos renascentistas e seus edifícios não tinham nada a oferecer.

Porém, em 1829 a Notre-Dame estava desmoronando. A catedral, utilizada como fábrica de pólvora durante a Revolução Francesa de 1789 à 1799, foi profundamente danificada. Suas maiores pedras foram utilizadas como fundações de novas pontes. Hugo temia que, como tantas das outras estruturas góticas da cidade, Notre-Dame em breve fosse demolida. Ele escreveu:

Todas as formas de profanação, degradação e ruína ameaçam simultaneamente o pouco que resta desses admiráveis monumentos da Idade Média que trazem a marca das glórias passadas de nosso país, às quais estão ligadas tanto a memória dos reis quanto a tradição do povo. Enquanto assistimos a construção, à alto custo, de edifícios bastardos (estes que, com a pretensão ridícula de parecerem gregos ou romanos na França, não são nem gregos nem romanos), outras estruturas admiráveis e originais estão ruindo sem que ninguém se dê conta disso, enquanto seu único crime é o de ser francês por origem, por história e por propósito.

Victor Hugo decidiu fazer algo neste sentido, tornando-se um dos primeiros historiadores do mundo que não era um colecionador privado. "Uma lamúria universal deve, finalmente, chamar a nova França para resgatar sua ancestralidade", disse ele em um editorial declarando guerra aos "demolidores” (Guerre aux demolisseurs!) Suas palavras eram mais poderosas do que qualquer espada. A novela, Notre-Dame de Paris, foi publicada em janeiro de 1831 para aclamação da crítica.

O sucesso do livro fez com que milhares de franceses do campo e de outras cidades viessem para Paris para visitar o edifício que Victor Hugo, tão amorosamente, descreveu. Eles queriam ver em primeira mão, de onde Quasimodo saltou para salvar Esmerelda da forca, onde Frollo conspirou com o Rei da França, onde uma alma triste esculpiu "destino" na parede da torre. O que o público descobriu foi uma catedral na beira do colapso. Como Hugo antecipou, os leitores concluíram que os parisienses não apreciavam a heróica beleza interna do edifício, sua força e seu caráter. Quasimodo era uma metáfora para o edifício, que não estava perdido para os fãs do romance. O protesto público para salvar a Catedral de Notre-Dame foi ensurdecedor e definitivo. A restauração começou em 1844.

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A consagrada história de Victor Hugo ainda está sendo impressa, 186 anos depois. Não existem números de vendas confiáveis, mas dezenas de milhões provavelmente já leram o livro. O romance foi traduzido no mundo todo, incluindo múltiplas versões em inglês, e adaptado para mais de 50 filmes, novelas, balé, teatros, musicais, podcasts, partituras e produções de games.

Hoje, é difícil separar o livro do edifício. O romance e a catedral estão tão conectados, um apoiando o outro até se tornarem inseparáveis. É uma relação mágica que os arquitetos fariam bem em estudar. Hugo desenvolveu uma intervenção comportamental furtiva dentro de uma história de amor embutida na arquitetura. Como bonecas russas aninhadas, Notre-Dame de Paris é uma história dentro de uma história dentro de uma história. Ao contrário, de apenas salvar uma garota. Internamente, a mensagem subliminar é salvar o edifício. A narrativa devota de Victor Hugo para com a arquitetura e fermentada em conjunto com as motivações comportamentais por mudanças na esfera social, transformaram a apatia geral em ações públicas. Imagine no que poderia ter se transformado a Pennsilvanya Station de Nova Iorque se Harper Lee ou J.D. Salinger escrevessem um best-seller em 1960, persuasivamente inserido no grandioso terminal.

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Notre-Dame, uma das primeiras catedrais góticas do mundo e entre as primeiras a usar a tecnologia de contrafortes em arco, foi concluída em 1345. Quase 500 anos depois, o fato de o prédio ser uma obra-prima artística e uma maravilha da engenharia já não tinha importância. Em 1830, Notre-Dame estava condenada - até que uma história de ficção transformasse a relíquia em um tesouro nacional. A lição para a comunidade de arquitetos é clara: um edifício sem uma narrativa, história ou imagem envolvente, não fará sentido e eventualmente, será esquecido. A arquitetura é mais do que uma casca vazia a ser preenchida - é uma história a ser contada.

E a ironia final nunca traumatiza. Há especulações de que o escritor desenvolveu o personagem de Quasimodo baseado em uma pessoa real, um escultor francês nascido deformado e apelidado de Le Bossu (francês para corcunda). Le Bossu morava no 6º distrito de Paris, não muito longe da catedral. Hugo era um visitante freqüente da Notre-Dame, então é possível que ele tenha visto Le Bossu na área, talvez até o conhecesse, ou quem sabe o tivesse ajudado a ganhar uma comissão. Le Bossu foi contratado para o projeto de restauração da catedral, completando poeticamente a estrutura heróica da história.

Richard Buday é arquiteto, escritor e educador com 20 anos de experiência em pesquisa comportamental. Sua empresa, com sede em Houston, Archimage, ganhou dezenas de prêmios por edifícios, interiores, curtas-metragens, propaganda de televisão e mídia interativa.

Sobre este autor
Cita: Buday, Richard. "Como um romance salvou a Notre-Dame e mudou a percepção da arquitetura gótica" [How a Novel Saved Notre-Dame and Changed Perceptions of Gothic Architecture] 08 Set 2017. ArchDaily Brasil. (Trad. Libardoni, Vinicius) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/879093/como-um-romance-salvou-a-notre-dame-e-mudou-a-percepcao-da-arquitetura-gotica> ISSN 0719-8906

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